Angelus

Angelus

Este blogue não é um blogue. O seu único interesse é não ter interesse nenhum. Chama-se O Sino da Minha Aldeia numa alusão ao poema de Fernando Pessoa, porque ouvi algures que o sino que lhe serviu de inspiração para escrever aquele poema era o sino da Igreja dos Mártires, no Chiado. Eu tenho a sorte de morar na mesma aldeia e de, pelas minhas janelas, entrar todos os dias o sino de uma outra igreja.  Este blogue é um projecto de um ano em que me proponho gravar todas as semanas o som do meu sino, por volta do meio-dia, à hora do Angelus. Alegra-me sempre muito poder ouvir, por entre o bulício da cidade, as badaladas deste sino, que marcam o curso do tempo, as horas do dia, mas também, pelo meio-dia, são um convite à oração, à abertura do tempo cronológico a um tempo fora do tempo, que lhe confere sentido.  

Tem a duração de um ano, porque a minha varanda dá para um jardim e queria filmar o jardim ao longo do ano, nesta periodicidade semanal, como forma de atenção às pequenas transformações – quase imperceptíveis de um dia para o outro, mas visíveis num tempo mais alargado – que ocorrem no jardim e são também metáfora das transformações (exteriores e interiores) que acontecem em nós mesmos. A observação do jardim ajuda a desenvolver a virtude da paciência, que consiste em aprender a esperar. Aprender a esperar pelo tempo em que o jacarandá dê flores ensina a respeitar o tempo do outro, que não é o nosso tempo, com os nossos ritmos e urgências, e a criar espaço para acolher o outro precisamente na sua alteridade face a nós.

Esta aventura começa no primeiro domingo da quaresma (na verdade o vídeo foi gravado no primeiro sábado, mas posto no blogue no domingo) como expressão da atitude de silêncio, de oração, de atenção a que este tempo convida. Pretende ser uma forma de atenção ao real, de descoberta da beleza do quotidiano, do habitual, daquilo que parece simples e próximo, mas que encerra em si o mistério do mundo, na passagem das estações, nas variações da luz ao longo do ano, e também no som do quotidiano das cidades e da vida nos prédios: o barulho dos carros, dos aviões, das sirenes, das conversas dos vizinhos, dos talheres a bater nos pratos, das cordas da roupa a chiar nas roldanas, das portas a bater ou a ranger, da música nas aparelhagens, da televisão, das obras que há sempre alguém a fazer algures, mas também do canto dos pássaros, do cão a ladrar ou a correr no jardim... de tal forma que seja possível descobrir nisso a surpresa e o espanto em relação ao facto de as coisas serem como são.

Este blogue não tem como objectivo apresentar coisas interessantes, novidades, assuntos da actualidade. É pura inactualidade e por isso mesmo pura contemporaneidade. Quis fazer um blogue em que não acontecesse nada. E no entanto, onde fosse possível acontecer o essencial. Quis fazer um blogue em que houvesse tempo. Tempo para ser. Sem mais. Tempo para ter tempo, para poder parar e poder escutar, já que o silêncio procurado aqui não é o da ausência de som ou do vazio, mas pelo contrário o silêncio que permita o acolhimento de uma presença. 

Não é um blogue sobre mim, não tem o ‘meu perfil’. Embora diga muito mais sobre mim do que se fosse um blogue sobre os meus livros preferidos ou sobre o que fizera no dia anterior. Também não tem caixa de comentários, não é um lugar de discussão, de troca de informações, porque não é um lugar para falar. É um lugar para calar e sobretudo para ouvir. Ouvir o momento presente, ouvir o sino e estar à escuta daquilo para que ele remete.

Deu-me muito mais trabalho do que imaginara tirar o que estava a mais no blogue, porque embora esta tecnologia seja muito fácil de utilizar, o blogue mais simples que há (que era o que eu queria) vem já com uma série de coisas associadas que não fazem realmente falta. Tentei afincadamente tirar os botões do Facebook, etc., mas não consegui, porque não encontrei sequer a possibilidade de os ocultar. Parece que somos obrigados a criar estas necessidades desnecessárias, a entrar na onda, quer queiramos, quer não. Foi um exercício trabalhoso de despojamento, o de tentar limpar o que estava a mais e de me apagar também a mim, até chegar a um blogue o mais minimal que consegui.

Inicialmente foi pensado como um blogue privado, ao qual só fosse permitido o acesso a algumas pessoas convidadas, mas agradou-me a ideia de criar um contra-blogue, um não-blogue, um espaço de silêncio, sem ‘conteúdos’ numa blogosfera por vezes asfixiante de tão saturada de ruído, de opiniões, de imediatez em que se pretende dizer tudo, explicar tudo, mostrar tudo, esclarecer tudo, resolver tudo. Julgo que é preciso calar mais e abrir mais espaço à contemplação e ao mistério. Não era tanto para ser do contra, para fazer uma coisa contra-corrente, mas sim porque o silêncio na sua relação com a escuta é verdadeiramente muito necessário para o aprofundamento da experiência, para a procura do sentido íntimo da realidade e para a capacidade de discernir entre aquilo que é realmente importante e o que não o é. Acontece que isso vai sendo raro no mundo em que vivemos, que às vezes chega a lembrar aquela passagem dos Actos dos Apóstolos em que se diz: «Cada qual gritava por seu lado, pois a assembleia estava em confusão, e a maior parte não sabia por que motivo se tinha reunido» (Act 19, 32).

Gostava que estas palavras (não consegui ser mais breve) não se somassem ao ruído, mas pelo contrário, ajudassem a entrar no silêncio da disponibilidade e da atenção, como o silêncio de Maria:

Angelus Domini nuntiavit Mariae.
- Et concepit de Spiritu Sancto.
Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum; benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Jesus.
Sancta Maria, Mater Dei, ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae.
Amen.

- Ecce ancilla Domini.
- Fiat mihi secundum verbum tuum.

- Ave Maria...


- Et verbum caro factum est.
- Et habitavit in nobis.


- Ave Maria...

- Ora pro nobis, sancta Dei Genitrix.
- Ut digni efficiamur promissionibus Christi.

Oremus
Gratiam tuam, quaesumus, Domine, mentibus nostris infunde, ut qui, angelo nuntiante, Christi Filii tui Incarnationem cognovimus, per Passionem eius et Crucem ad resurrectionis gloriam perducamur.
Per eundem Christum Dominum nostrum.
Amen.


Ou:


Regina coeli, laetare, alleluia: Quia quem meruisti portare, alleluia. Resurrexit sicut dixit, alleluia. Ora pro nobis Deum, alleluia.

V. Gaude et laetare, Virgo Maria, Alleluia,
R. Quia surrexit Dominus vere, alleluia.

Oremus: Deus qui per resurrectionem Filii tui, Domini nostri Iesu Christi, mundum laetificare dignatus es: praesta, quaesumus, ut per eius Genetricem Virginem Mariam, perpetuae capiamus gaudia vitae. Per eundem Christum Dominum nostrum.
R. Amen.